A Importância de Vera Rubin para a ciência e o mundo
Fãs de ficção científica nos filmes, televisão, literatura e videogames provavelmente já se depararam com a misteriosa Matéria Escura cruzando o caminho de seus heróis durante alguma aventura intergalática. É o caso da nebulosa de matéria escuras com a qual o famoso Capitão Picard teve que lidar em Star Trek: A Nova Geração. Ou, na mais recente série, The Flash, onde ela aparece como um forte agente mutagênico, transformando humanos em metahumanos dotados de super poderes. E na hilariante série animada Futurama, onde foi representada como o material defecado pela raça alienígena dos Nibblonianos e usada como combustível de naves espaciais.
Não existe na ficção um consenso sobre o que é e do que é feita a Matéria Escura, reflexo do que a ciência sabe sobre ela: muito pouco. Isso aumenta o mistério sobre essa substância que compõe aproximadamente 27% de toda a massa e energia do Universo observável. Até o nome, Matéria Escura, é um reflexo do quão pouco os cientistas sabem sobre ela, sendo o “Escura” referente ao fato de ainda não ter sido observada diretamente. Mas sua existência e suas propriedades únicas foram descobertas e estudadas graças a uma cientista da qual você talvez não tenha escutado muito na escola ou na televisão: Vera Rubin (1918-2016).
Graduada em astronomia pela Vassar College em 1948, foi em 1951, durante seu mestrado na Cornell University que Vera Rubin publicou resultados de uma pesquisa que causariam controvérsia no mundo da cosmologia. Rubin contradizia uma das ideias centrais da teoria do Big Bang como era concebida na época. Postulava-se que o Universo estaria em constante expansão e que as galáxias estariam se distanciando de um ponto central, o ponto onde a grande explosão teria ocorrido. Ela, ao contrário, argumentou que as galáxias estariam não apenas se distanciando deste ponto central, mas também orbitando-o. A ideia foi recebida com uma enxurrada de críticas, a maioria negativa, por ser uma idéia, até então, não-ortodoxa.
Não se deixando abalar, deu seguimento a suas pesquisas acerca da movimentação das galáxias, obtendo em 1954 o PhD na Georgetown University sob orientação de George Gamow. Em sua tese, Rubin mais uma vez apresentou uma ideia que ia contra outra suposição da teoria do Big Bang, a de que as galáxias se espalhavam de forma aleatória e homogênea no Universo. Ela, por sua vez, argumentou que as galáxias se agrupavam, formando clusters. Essa ideia, descreditada a princípio, só seria levada a sério por outros cientistas duas décadas mais tarde. Hoje, a ideia de galáxias formando clusters não apenas é aceita, mas fortemente comprovada em diversos estudos.
Após obter seu título de doutora, Rubin trabalhou como assistente de pesquisa na Georgetown University, e em 1962 passou a fazer parte do quadro docente da instituição. Em 1965, porém, conseguiu atingir duas posições de grande importância para sua carreira e a de outras cientistas. A primeira, como a primeira mulher a receber permissão de uso para os equipamentos do Observatório Palomar, pertencente ao California Institute of Technology (Caltech) e lar do famoso telescópio Hale. Antes dessa conquista, mulheres não eram permitidas acesso ao prédio. A segunda, garantindo uma posição como pesquisadora no Departamento de Magnetismo Terrestre (DTM, na sigla em inglês) da Carnegie Intitute, em Washington, onde conheceria seu grande amigo Kent Ford e desenvolveria seu trabalho mais impactante. Lá, desejando se distanciar de mais controvérsias, Rubin escolheu como objeto inicial de suas pesquisas as curvas de rotação da Galáxia de Andrômeda, vizinha da nossa própria galáxia, a Via Láctea.
Nas galáxias, estrelas orbitam ao redor de um centro, estando algumas mais próximas e outras mais distantes, muito semelhante ao que observamos no Sistema Solar, mas em escala maior. Curvas de rotação, apesar do nome algo críptico para leigos em cosmologia, são gráficos simples usados para descrever a velocidade de órbita dessas estrelas em relação à distância em que se encontram do centro da galáxia.
Como exemplo, vamos dar um passo abaixo na escala cósmica e observar o nosso conhecido Sistema Solar. Ao redor do Sol, orbitam oito planetas: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno. Enquanto Mercúrio, o planeta mais próximo do centro, demora aproximadamente ¼ de ano terrestre para completar uma volta ao redor do Sol, Netuno, o mais distante, demora em torno de 165 anos terrestres. Isso ocorre, pois a gravidade exercida pelo Sol não age de forma igual em todos os planetas, sua força diminui quanto maior a distância. Assim, a força gravitacional que o Sol exerce sobre Mercúrio é maior do que a exercida sobre Netuno, e isso influencia sua velocidade orbital. Expressas num gráfico, onde X representa a distância em relação ao Sol e Y representa a velocidade em km/s, as velocidades orbitais dos oito planetas apareceriam como uma curva decrescente: quanto maior a distância do Sol, menor a força gravitacional sentida e menor a velocidade orbital.
Agora voltemos às galáxias. Em tese, elas deveriam funcionar como o sistema solar: quanto maior a distância de uma estrela em relação ao centro da galáxia, menor sua velocidade de rotação ao redor deste centro, correto? Errado.
Apesar de ser o esperado, não foi o que Rubin e Ford obervaram ao estudarem a Galáxia de Andrômeda. Eles notaram que, na verdade, o inverso ocorria. As estrelas mais distantes do centro da galáxia se moviam a velocidades semelhantes, se não iguais, às estrelas mais próximas do centro. Intrigados, resolveram olhar para outras galáxias, acreditando que encontrariam um erro em suas observacões iniciais, mas encontraram o mesmo fenômeno se repetindo em todas elas. Procurando por uma explicação, perceberam que a gravidade das estrelas constituintes das galáxia não era capaz de resolver aquele problema, e pior, criava um novo problema: se ela fosse a única força atuando, então, teoricamente, não haveria força suficiente para mantê-las unidas, e as galáxias se desmembrariam.
Assim, Rubin e Ford, em 1970, teorizaram a existência de uma grande quantidade de massa invisível que estaria exercendo uma força gravitacional intensa sobre as galáxias, permitindo que as estrelas mais distantes se movessem à mesma velocidade das estrelas mais próximas do centro, ao mesmo tempo em que mantinha as galáxias unidas. Essa massa, dizam eles, não poderia ser detectada por não emitir ou interagir com radiações eletromagnéticas, como a luz, base das observações de fenômenos cosmológicos, e portanto recebeu o nome de Matéria Escura. Mas apesar de não poder ser observada diretamente, suas propriedades e existência conseguem ser provadas através dos efeitos gravitacionais que exercem sobre a matéria visível do Universo, as estrelas, os planetas, as galáxias.
A simples existência da Matéria Escura nos mostra o quão pouco sabemos do Universo em que habitamos, e que talvez existam forças influenciando as estrelas e seu movimento (e, quem sabe, até nos influenciando) das quais ainda podemos não ter conhecimento algum. E por isso, precisamos de mais pesquisadoras e pesquisadores como Vera Rubin, para nos ajudar a entender o que continua escondido na parte escura do nosso Universo. E quem sabe, com pesquisa suficiente, não conseguiremos, nós mesmos, utilizar essa Matéria Escura como combustível de nossas naves espaciais?