“Alça de bota”: um “truque” da Física para questões muito complexas

Written by Felipe Saldanha on October 5th, 2023. Posted in Blog do ICTP-SAIFR

Técnica do bootstrap, que permite obter resultados a partir de princípios gerais, tem sido explorada por colaboração global de pesquisadores

 

Parte do calçado que deu nome ao conceito remete a processos que se desenvolvem sem influência exterior (Foto: Ivan Bolshakov/Unsplash)

 

Em inglês, há uma expressão que pode ser traduzida como “puxar-se pelas alças das próprias botas”, utilizada para situações difíceis que alguém precisa resolver sozinho sem ajuda externa. Essa expressão levou ao surgimento do termo bootstrap (literalmente “alça de bota”), usado em vários campos do conhecimento para se referir a processos que podem ser desenvolvidos dispensando a influência do exterior.

A filosofia por trás desse conceito também tem sido aplicada em alguns dos mais difíceis problemas que a Física enfrenta na atualidade, relacionados ao chamado acoplamento forte. Esse foi o tema de um workshop promovido pelo ICTP-SAIFR, centro internacional sediado no Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp, em junho e julho deste ano, com convidados e participantes de diversos países.

Nos sistemas fracamente acoplados, como gases ou a luz, as partículas não colidem ou interagem muito entre si e, portanto, estão mais livres. Estudá-los é relativamente simples, pois é possível usar um método conhecido como teoria de perturbações, que permite “quebrar” um problema em problemas menores. Isso porque é fácil separar as partes constituintes desses sistemas, ou seja, os “bloquinhos” dos quais são feitos.

Os sistemas fortemente acoplados, por sua vez, são muito mais difíceis de analisar. Nesses sistemas, muitas partículas interagem entre si ao mesmo tempo. Por causa disso, é como se suas partes constituintes formassem uma sopa, “mas tão misturada que você não consegue sequer separá-las. E nessa situação começa até a se tornar ambíguo o que é feito do quê”, aponta o físico russo Slava Rychkov, professor do Instituto de Estudos Científicos Avançados da França. Em casos assim, a teoria de perturbações não funciona e é preciso adotar outros modelos, como as teorias conformes. É aí que o bootstrap entra, ao oferecer uma nova abordagem para o estudo dessas teorias, baseada em princípios gerais.

Teorias conformes são especialmente úteis para descrever pontos críticos: por exemplo, transições de fase – quando água em estado líquido vira vapor ou quando um imã deixa de ser magnético. Uma das características desse tipo de fenômeno é a invariância de escala. Em outras palavras, não importa se você observa o sistema mais de perto ou mais de longe: ele parece se comportar da mesma forma.

O físico português Pedro Vieira, professor em conjunto do ICTP-SAIFR/IFT-Unesp e do Instituto Perimeter (Canadá), explica que investigações envolvendo teorias conformes são um desafio matemático: “muitas vezes, fazer as contas da forma tradicional é impensável porque são muitas variáveis”, com cálculos que exigem grande poder computacional. “A ideia do bootstrap é tentar chegar direto aos resultados sem passar pelas contas.”

Essa nova forma de pensar, que chega a ser contraintuitiva, coloca o pesquisador no papel de um navegador, analogia usada por Slava Rychkov. O “mar” seria um espaço de parâmetros, ou seja, todos os possíveis valores dentro de um modelo matemático específico. Ao resolver equações, segundo Rychkov, certas regiões surgem dentro desse “mar”, como se fossem ilhas, arquipélagos e continentes. Tais regiões podem conter teorias interessantes, a serem descobertas com o auxílio de técnicas analíticas e numéricas.

Pedro Vieira afirma que essa exploração de teorias, em busca de definir o que é possível e o que é impossível, leva os físicos a encontrar valores que, na sequência, é viável examinar de forma mais convencional: “quando já se sabe o resultado, é mais fácil voltar para os métodos tradicionais e tentar desenvolver novas armas para estudar esses modelos”. Outra forma de verificá-los, quando isso é exequível, é por meio de experimentos em aceleradores de partículas.

Colaboração internacional

Os mais recentes avanços no uso do bootstrap na Física têm sido promissores, estendendo-se para áreas variadas, que vão da teoria das cordas à matéria condensada, passando por holografia, buracos negros e até propostas para além do Modelo Padrão (o mais completo modelo até o momento para descrever a matéria visível). Por esse motivo, a Fundação Simons, uma tradicional financiadora internacional de ciência de ponta, mantém uma colaboração com dezenas de pesquisadores ao redor do mundo dedicados ao tema, incluindo Slava Rychkov e Pedro Vieira, além de pós-doutorandos e estudantes de doutorado.

De acordo com o físico português João Penedones, da Escola Politécnica Federal de Lausana (Suíça) e um dos pesquisadores principais da colaboração, a iniciativa ajudou a criar uma comunidade em torno do conceito, que se mantém ativa participando de reuniões periódicas e, uma vez por ano, se encontrando em uma grande conferência presencial, com duração de três a quatro semanas – a deste ano foi o workshop realizado pelo ICTP-SAIFR. “Dessa forma, nós continuamos colaborando juntos. Algumas pessoas exploram áreas ligeiramente diferentes, mas nós sempre nos reunimos para manter essa motivação e esse ímpeto”, diz Penedones.

Para Rychkov, que é diretor adjunto da colaboração, o financiamento oferecido pela Fundação Simons – aplicado em bolsas e serviços de tecnologia, necessários para rodar os algoritmos responsáveis pelos cálculos das pesquisas – é secundário diante do “efeito de amplificação” proporcionado pelos encontros regulares, que envolvem especialmente físicos em início de carreira: “Acho que isso foi maior do que seria se cada um de nós apenas recebesse esse dinheiro para fazer o que quiser sem questionamentos. Não seria possível fazer toda essa boa ciência que fizemos.”

 

Felipe Saldanha é jornalista de ciência do ICTP-SAIFR com bolsa da Fapesp.

Agradecimento: Francesco Aprile, da Universidade Complutense de Madri (Espanha)