Posts Tagged ‘ecologia’

Formação em Biologia e Ecologia Quantitativas realizada por ICTP-SAIFR e Instituto Serrapilheira começa em julho

Written by Malena Stariolo on June 30th, 2022. Posted in Blog do ICTP-SAIFR

Reportagem por Yama Chiodi e Malena Stariolo

Na próxima segunda, dia 4 de julho, começa a segunda edição do Programa de Formação em Biologia e Ecologia Quantitativas. Após uma primeira edição online, realizada em 2021, em 2022 o curso será presencial e contará com a participação de pesquisadores de ponta, que ministrarão minicursos para os 31 estudantes selecionados de diversas áreas e vindos de várias partes do Brasil e da América Latina. O programa surgiu a partir de uma parceria entre o Instituto Serrapilheira e o ICTP-SAIFR, visando cobrir uma demanda pela criação de uma comunidade de cientistas capazes de aplicar métodos matemáticos e computacionais à biologia e à ecologia no Brasil.

Ricardo Martínez-García, pesquisador do ICTP-SAIFR e coordenador científico das duas primeiras edições do programa, conta que o ICTP-SAIFR surgiu como um ótimo instituto parceiro, por sua tradição e objetivo de impulsionar a pesquisa em física teórica na América Latina e por realizar, desde 2012, a escola de verão de Biologia Matemática, organizada pelo pesquisador Roberto Kraenkel. “Pra mim foi como colocar juntos esses dois interesses, do ICTP-SAIFR de criar oportunidades para jovens cientistas latino-americanos, e do Serrapilheira de ter esse foco muito claro no treinamento de cientistas para estudar sistemas biológicos complexos”, afirma ele.

Durante os cinco meses de duração do programa, os participantes terão aulas com pesquisadores de ponta das áreas de biologia e ecologia quantitativas, além de terem a oportunidade de conviver uns com os outros, em um ambiente estimulante para trocas de ideias e experiências. Segundo a pesquisadora Flávia Marquitti (Unicamp), que participa da coordenação científica deste ano e liderará a terceira edição prevista para 2023, a presença de colegas e professores de origens, universidades e grupos de pesquisa diversos vai expor os alunos a diferentes formas do fazer científico e enriquecer eventuais trabalhos feitos após o treinamento oferecido pela formação.

A interdisciplinaridade é uma das grandes características do programa, nesse contexto Marquitti avalia que há poucos espaços interdisciplinares na pós-graduação no Brasil, o que acaba criando um vácuo na formação de cientistas capazes de solucionar problemas que só poderão ser resolvidos no trabalho conjunto entre biologia, matemática e outras áreas. Para ela, as disciplinas têm suas próprias abordagens e enxergam possibilidades distintas para problemas em comum. A pesquisadora comenta: “quando diferentes disciplinas trabalham juntas elas não são só uma soma. Falando especificamente da aplicação, de usar modelos matemáticos nas áreas biológicas, a gente ganha muita informação e consegue generalizar algumas coisas que só com o conhecimento das biológicas a gente não conseguiria”.

O caminho contrário também é verdadeiro. Se a matemática pode ajudar as ciências biológicas a construir formalismos e generalizações, os cientistas das exatas vão aprender que a biologia impõe importantes limites no que pode ser generalizável. A professora acrescenta que “não dá pra fazer uma teoria de tudo na biologia. Então, quando a gente une as duas áreas, as exatas aprendem a conhecer os limites biológicos, para só então conseguir modelos que sejam aplicáveis pras ciências da vida”.

Ambos os coordenadores científicos compartilham da opinião de que os espaços para formação e pesquisa interdisciplinar ainda são incipientes no Brasil e que, geralmente, aparecem muito tarde na carreira do pesquisador. Martínez-García diz que, no programa, os alunos vão ser treinados para problemas que não podem ser resolvidos por uma pessoa ou mesmo por um grupo de pessoas da mesma área de formação, segundo ele: “problemas como a perda de diversidade e as mudanças climáticas não vão ser resolvidos por pessoas de só uma expertise. Vão ser necessárias equipes transdisciplinares e eles vão ter que aprender a falar uns com os outros. Físicos e ecólogos normalmente não falam a mesma língua, por exemplo”. É por essa razão que Marquitti considera que o programa é de fato um treinamento, diferente de cursos acadêmicos tradicionais.

A expectativa é que, ao fim do programa, os alunos consigam trabalhar juntos em áreas interdisciplinares, além disso, outro objetivo é formar uma rede de pesquisadores que contribuirá para o avanço da ciência. Para isso, Martínez-García comenta que estão previstos encontros anuais entre os ex-alunos do programa, que poderão estreitar laços profissionais e de pesquisa. Entre 4 de julho até 2 de dezembro serão realizados minicursos, seminários de pesquisa, sessões de debate, journal clubs e outras atividades que os selecionados do programa poderão participar. Para conhecer em detalhe todas as atividades, palestrantes, temas e participantes, basta acessar o site do programa no endereço https://www.ictp-saifr.org/qbioprogram/.

Criado em 2017, o Instituto Serrapilheira é a primeira instituição privada de apoio à ciência e à divulgação científica no Brasil. Sem fins lucrativos e com recursos oriundos de um fundo patrimonial, já apoiou 150 projetos de pesquisa e 58 de divulgação científica.

O ICTP-SAIFR é um centro de pesquisa em Física Teórica, vinculado ao IFT-UNESP e ao Abdus Salam International Centre for Theoretical Physics em Trieste, com apoio financeiro da FAPESP, UNESP e Instituto Serrapilheira. O ICTP-SAIFR realiza diversas atividades de treinamento para pesquisadores, como workshops e escolas, o cronograma pode ser acessado no site do instituto: http://ictp-saifr.org. Além disso, o SAIFR também organiza atividades de divulgação e extensão para professores e estudantes de Ensino Médio e para o público geral, confira a programação em: http://outreach.ictp-saifr.org.

Pesquisa sobre competição subterrânea entre plantas na revista Science

Written by Artur Alegre on January 14th, 2021. Posted in Blog do ICTP-SAIFR

Abaixo da superfície, plantas travam uma constante disputa pelo espaço e recursos presentes no solo. Embora ocorra escondida do olhar humano, o entendimento da complexa dinâmica de raízes no subsolo pode trazer consequências muito significativas para a sociedade, abrangendo desde a criação de plantios mais sustentáveis e eficientes, até o estabelecimento de estratégias de mitigação de efeitos climáticos. No estudo The exploitative segregation of plant roots, publicado em 4 de dezembro na revista Science, é apresentado um modelo matemático capaz de mapear as interações entre raízes de plantas que acontecem embaixo da terra, dando uma nova luz ao entendimento de um mecanismo ecológico fundamental. O trabalho foi desenvolvido por um grupo de pesquisadores de instituições do Brasil, Espanha e Estados Unidos, e contou com a participação de Ricardo Martínez-García, professor SIMONS-FAPESP no Instituto Sul-Americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR) e no Instituto de Física Teórica da UNESP (IFT-UNESP), como um dos principais autores da pesquisa.

Raízes tingidas de plantas de pimenta. O tingimento é empregado como método de diferenciação entre raízes de plantas vizinhas para facilitar o estudo de sua interação. Imagem cedida por Ciro Cabal.

Em entrevista concedida por videoconferência ao ICTP-SAIFR, o professor Martínez-García fala sobre algumas das motivações do trabalho: “Muito da dinâmica dos ecossistemas na verdade acontece abaixo da terra. Se nós pretendemos entender como os ecossistemas funcionam, e como, por exemplo, respondem a mudanças globais, nós precisamos compreender o que acontece no subsolo. Não basta apenas entender a parte que conseguimos observar.” Martínez-García dedica sua pesquisa à área da Física aplicada à Biologia, em especial ao desenvolvimento de modelos físico-matemáticos para estudar sistemas ecológicos complexos, e foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento teórico neste estudo.

O modelo apresentado neste trabalho simula o balanço entre a quantidade de energia gasta por uma planta para produzir uma certa quantidade de raiz em uma dada direção, em relação ao ganho de recursos – nesse caso, absorção de água – que a planta terá ao produzi-la. O professor exemplifica: “Em cada ponto do espaço, uma planta somente vai colocar raízes se o recurso nesse ponto é suficientemente alto para devolver um benefício para ela. (…) Para uma planta absorver recursos a 2 m do seu caule, é mais custoso do que a 10 cm, pois como ela não pode se deslocar, precisa fazer uma raiz mais longa. Construir todo esse mecanismo mais longo é energeticamente mais custoso para ela. Então esse é o balanço.” A presença de uma segunda planta na vizinhança muda a dinâmica dessa balanço, pois nesse cenário os dois organismos passam a competir pela água disponível no solo ao redor. Dessa maneira a distribuição de raízes no solo ganha um grau de complexidade maior. “Imagine que você tem uma certa quantidade de água em um ponto do espaço. Esse ponto fica a 2 m de uma planta e a 0,5 m de outra. Mesmo que as duas dividissem essa quantia de água de maneira idêntica, para uma planta o custo seria menor do que para a outra. O benefício da planta que está mais perto é maior, por isso as plantas se espalham menos quando têm vizinhas.

Embora essa relação seja simples o bastante de compreender, o caminho para se chegar a um modelo matemático capaz de simular precisamente a proporção em que esse balanço ocorre exige uma base matemática muito forte. De fato, uma das coisas mais interessantes sobre o modelo, explica o professor, é o fato de ele ter sido inspirado por uma aparente contradição existente em modelos predecessores. “Dentre os grupos de pesquisa que já buscaram entender esse processo, de como plantas mudam seu sistema de raízes na presença de outras plantas, tinha duas maneiras de responder essa pergunta: havia grupos de pesquisadores que não consideravam a distribuição no espaço, medindo apenas a massa total de raiz produzida. Desses estudos concluiu-se que se uma planta tem uma vizinha próxima, ela irá gerar mais raiz: a resposta de uma planta a uma competição por recursos seria ter mais raízes, para tentar absorver mais, e mais rápido.”

“Outro grupo apenas mediu quanto espaço a planta cobre com suas raízes. No lugar de se perguntar quanta massa de raiz as plantas geram, perguntou-se de que maneira o território do qual a planta absorve água muda na presença de uma vizinha. A conclusão foi que neste caso as plantas ocupam um território menor, espalhando-se menos. Aí ficou uma contradição, pois se há um espalhamento menor, como você produz mais raiz?”, aponta o professor. Uma maior densidade de raízes, explica, poderia responder essa aparente contradição, mas os modelos até então não possuíam informação suficiente para afirmar que este seria o caso. “Então o que nós fizemos foi um modelo geral que introduz o espalhamento das plantas junto com a quantidade de raiz em cada local do espaço. Leva em consideração as duas coisas. E com a técnica experimental que usamos, conseguimos fazer uma reconstrução espacial completa. (…) A conclusão geral na qual chegamos foi justamente que: sim, as plantas se espalham menos na presença de uma vizinha, sendo mais locais na procura de recursos, mas nas suas proximidades elas se tornam mais agressivas, isto é, produzem mais raízes perto do próprio caule.” 

Ricardo Martínez-García é professor SIMONS-FAPESP no ICTP-SAIFR e no IFT-UNESP. Sua pesquisa busca empregar técnicas computacionais e de Física Estatística para examinar a formação de padrões de organização em sistemas biológicos complexos, e abrange desde estudos com micróbios até plantas e paisagens inteiras. Imagem cedida por Ricardo Martínez-García.

As predições do modelo foram testadas em um experimento conduzido no Instituto de Ciências Agrárias de Madri, na Espanha. O teste foi feito em uma variedade de espécies de plantas de pimenta, cultivadas em estufa por 11 meses sob condições muito controladas para esse experimento. “É comum na Biologia você fazer um experimento com uma espécie modelo. (…) Nós usamos a planta de pimenta pois o Ciro Cabal, que é o autor principal do artigo, já conhecia o organismo para cultivá-lo de uma maneira mais controlada. Uma vez que você descobre um mecanismo num organismo modelo, aí vem a questão de como generalizar para outras espécies, do quão geral o modelo é etc.” É a mesma lógica, comenta o professor, do uso de ratos de laboratório em estudos sobre doenças humanas. Após o crescimento das plantas, caules e folhas foram cortados e colhidos. As raízes, ainda no solo, foram tingidas com pigmentos de cores diferentes, a fim de permitir o reconhecimento de cada planta em meio ao emaranhado de raízes. “Depois de colorir as plantas, fizemos diversas pequenas divisões no solo, e então pudemos ver o quanto cada planta possuía de raiz em cada divisão. Com isso, conseguimos construir um mapa espacial das raízes de cada planta.”

“Quando o Ciro Cabal escreveu para mim com os resultados dos experimentos realizados, e a figura do experimento era a mesma que uma das figuras do nosso modelo, para mim essa foi a maior satisfação. Não apenas de um ponto de vista pessoal, mas por se tratar de um mecanismo fundamental da Ecologia que ainda não era conhecido.”, relata o professor. Para além da contribuição para a ciência de base, a existência de um modelo matemático como esse, capaz de descrever a competição entre plantas que se passa no subsolo, pode trazer implicações muito expressivas para a maneira como é feita agricultura, permitindo a criação de um sistema de plantio otimizado e o aumento da produção de alimentos. “Se eu colocar 15 cm entre as minhas plantas, elas irão investir menos em produção de raízes e mais em produção de frutas, por exemplo. Isso pode aumentar muito a eficiência de cultivos com um investimento de água menor.”, conjectura o professor. Além disso, as raízes constituem uma grande reserva de carbono, que armazena aproximadamente um terço de toda a biomassa de plantas do planeta. Por isso, uma melhor compreensão do seu comportamento permitirá o desenvolvimento de melhores modelos de grande escala, com os quais cenários de mudanças climáticas  podem ser simulados.

Desse ponto em diante, o trabalho de Martínez-García e seus colaboradores deve seguir rumo ao aprofundamento do modelo: estudar as interações envolvendo sistemas com mais de duas plantas, espécies diferentes e em condições climáticas distintas esses são alguns dos próximos passos na lista dos pesquisadores. “O que fizemos foi uma primeira contribuição, dar uma ideia dos mecanismos que dominam esses padrões espaciais de raízes. Evidentemente há muito mais trabalho para fazer, mas encaixar a primeira peça é uma grande satisfação.”, conclui o professor. 

——————————————————————————————————————————-

O artigo The exploitative segregation of plant roots, publicado em 4 de dezembro de 2020 na revista Science, é de autoria de Ciro Cabal (Universidade de Princeton, Estados Unidos), Ricardo Martínez-García (ICTP-SAIFR/IFT-UNESP, Brasil), Aurora de Castro (Museu Nacional de Ciências Naturais, Espanha), Fernando Valladares (Museu Nacional de Ciências Naturais/Universidade Rei Juan Carlos, Espanha) e Stephen W. Pacala (Universidade de Princeton, Estados Unidos).

A importância ecológica de uma vida solitária

Written by Artur Alegre on May 25th, 2020. Posted in Blog do ICTP-SAIFR

A organização coletiva é uma estratégia de sobrevivência observada em muitas espécies, das formas de vida microscópicas até alguns dos maiores animais conhecidos. Mas indivíduos solitários – aqueles deslocados, que não seguem as tendências do grupo – são quase tão comuns quanto, e, de acordo com um estudo publicado no último mês de março no periódico Plos Biology, os solitários podem servir também a um propósito crucial para a conservação da espécie. A descoberta foi possível graças a experimentos realizados com a ameba Dictyostelium discoideum na Universidade de Princeton, em Nova Jersey, Estados Unidos, por uma equipe multidisciplinar e internacional que contou com o pesquisador Ricardo Martinez-Garcia, professor  SIMONS-FAPESP no ICTP-SAIFR e no Instituto de Física Teórica da UNESP, em São Paulo.

Corpo multicelular da ameba Dictyostelium discoideum. Indivíduos unicelulares se agregam para formar uma estrutura de caule e esporos como estratégia de sobrevivência. Foto: Tyler Larsen/Creative Commons.

Desde os movimentos de migração coletiva feitos por algumas espécies de aves ou mamíferos, até o florescimento sincronizado de certas plantas, ecólogos sempre observaram a existência de certos indivíduos de um grupo que parecem se recusar a seguir o mesmo comportamento da maioria. Do ponto de vista biológico, estes solitários sempre foram encarados como pontos fora da curva, isto é, casos de comportamento anômalo, erros na tentativa de coordenar uma ação coletiva complexa. No entanto, o artigo publicado na edição de 19 de março no periódico Plos Biology sugere que tal comportamento pode também fazer parte de uma estratégia biológica de sobrevivência e promoção de diversidade.

A vida da ameba D. discoideum possui duas fases, marcadas por uma manobra de sobrevivência peculiar: enquanto as amebas estiverem inseridas em um meio com disponibilidade de alimento, vivem como organismos unicelulares individuais, porém, ao encararem a escassez, as amebas iniciam um movimento auto-organizado de agregação, formando um organismo multicelular em formato de um caule com uma aglutinação de amebas em forma de esporos na sua ponta. As células que formam o caule acabam morrendo, mas aquelas no topo possuem maior chance de acabar entrando em contato com insetos ou animais passageiros e assim serem transportadas para um novo local, com maior quantidade de alimentos disponíveis. Muitos estudos têm focado no entendimento da transição de fases do ciclo de vida dessa ameba, mas pouca atenção havia sido dada até então às células solitárias.

Um dos autores do trabalho, o Dr. Ricardo Martinez-Garcia dedica-se à área da física aplicada à biologia, buscando entender sistemas ecológicos do ponto de vista da física estatística: “Não procuramos o comportamento individual de cada uma das células, plantas ou animais, mas o que realmente tratamos de descrever com precisão são as interações [entre as componentes do sistema e, a partir delas entender como surgem os padrões que observamos na escala macroscópica.”, explica o professor em entrevista concedida por videoconferência. No caso da D. discoideum, Martinez-Garcia e seus colaboradores usaram essa abordagem para descrever o mecanismo de transição entre as fases unicelular e multicelular, e assim foram capazes de criar um modelo que leva em conta inclusive as amebas solitárias que não se envolvem no processo de transição.

Ricardo Martinez-Garcia é professor SIMONS FAPESP no ICTP-SAIFR e no IFT-UNESP. O trabalho “Eco-evolutionary significance of ‘loners’” foi desenvolvido em parceria com colaboradores da Universidade de Princeton, onde realizou seu pós-doutorado. Os co-autores da pesquisa foram Fernando W. Rossine (Universidade de Princeton, Estados Unidos), Allyson E. Sgro (Universidade de Princeton e Universidade de Boston, Estados Unidos), Thomas Gregor (Universidade de Princeton, Estados Unidos e Instituto Pasteur, França) e Corina E. Tarnita (Universidade de Princeton, Estados Unidos). Foto cedida por Ricardo Martinez-Garcia.

Quando perguntado sobre o funcionamento deste modelo, o Prof. Martinez-Garcia explica que nesse processo de transição, a comunicação entre as células se dá por sinais bioquímicos: uma vez que o alimento do ambiente começa a se esgotar, a célula passa a secretar substâncias que, quando detectadas pelas suas vizinhas, podem provocar o início do processo de agregação. “A nossa hipótese para a origem dessas amebas solitárias é uma resposta tardia, que ocorre por algum motivo que não identificamos molecularmente. Quando elas vão responder ao sinal, já não há mais uma massa crítica [nas suas vizinhanças]. A agregação precisa de um número de células grande, com duas ou três não tem início o comportamento coletivo. (…) Como há uma falta de sincronia na resposta, as que responderem mais tarde, de certa maneira, chegarão atrasadas para o comportamento coletivo”. Baseando-se nisso, construíram um modelo matemático que leva em consideração duas escalas de tempo: o tempo que todo o processo de agregação leva para ser completado, e o tempo que uma célula pode levar para responder ao sinal bioquímico. Se o tempo de resposta de uma célula é maior do que o tempo médio no qual todo o resto da população se agrega, a célula sobra como um indivíduo solitário.

Isso mostra que os indivíduos solitários, ao menos no caso da ameba D. discoideum, não são simples resultado de um processo aleatório ou fora do controle do próprio organismo – pelo contrário, eles surgem pelo próprio processo coletivo de auto-organização. E isso significa que a seleção natural poderia estar escolhendo esse comportamento, isto é, o comportamento solitário pode ser uma característica passada adiante no processo de reprodução, com possíveis consequências ecológicas. “É uma mudança radical na maneira como se estuda comportamentos coletivos na natureza. Ao menos nessas amebas, temos evidência experimental de que os indivíduos solitários não são erros. Eles certamente estão regulados pelo organismo, e poderiam ter um papel muito importante na ecologia e na evolução da espécie. Essa é a maior mensagem.”

O professor continua explicando que, por não estarem tão envolvidos no comportamento social, um dos papéis fundamentais que os solitários podem estar desempenhando é que, caso os esforços coletivos não sejam suficientes para a sobrevivência da população, ou caso esta seja destruída no processo por algum agente externo, aqueles que não participaram da mobilização do grupo serão sobreviventes com a capacidade de reconstruir e dar continuidade à espécie. “Por exemplo, o bambu tem um período de florescimento que é muito fechado – numa parte muito específica do ano – mas que também não é perfeito. Alguns produzem as flores mais tarde ou mais cedo que o resto da população. Nisso temos uma conexão muito mais clara de se fazer: imagine que todas as flores crescem no mesmo dia, se neste dia fizer um sol muito forte, nevar ou qualquer coisa assim, toda a população vai morrer. Mas se você tem esses indivíduos não sociais que por alguma razão produzem as flores um mês antes ou depois, você de certa maneira tem uma distribuição do risco.”

Os mecanismos por trás do surgimento de solitários certamente diferem ao se olhar para sistemas de espécies diferentes. Enquanto o modelo criado neste trabalho é capaz de descrever o processo para a D. discoideum, com direito a evidências experimentais, em outros reinos da vida natural os mecanismos por trás disso continuam desconhecidos. “Infelizmente trabalhar com pessoas ou com animais maiores é muito mais complicado. Mesmo com a ameba a experimentação foi extremamente complexa.”, explica. “Nós procuramos muitos exemplos na natureza. Tem, por exemplo, os gnus: eles fazem migrações muito grandes, nas quais a população coordena entre si para se mudarem todos juntos. Mas quando ecólogos seguem essas populações, veem que alguns animais ficam para trás ou não tomam parte da migração coletiva. Outro exemplo são gafanhotos: quando você tem muitos gafanhotos juntos há uma mudança de comportamento, eles transicionam de solitários para sociais. Mas se você observa por muito tempo um grupo muito grande deles, nem todos fazem essa transição.”

“Mesmo na população de humanos temos os ‘do contra’: são pessoas que vão contra opiniões gerais. Se você quiser extrapolar, podemos ficar no contexto da formação de opinião e tendências sociais. [Mas] acho que isso é muito mais hipotético. (…) Nós sabemos que no mundo natural temos exemplos mais claros.” Com uma última ressalva, o professor ainda faz uma breve consideração sobre a pandemia do vírus Sars-Cov-2: “Temos um caso muito claro com a pandemia. A não-socialidade agora é muito importante para preservar a sociedade, se quisermos olhar assim. Mas a extrapolação para humanos fica totalmente fora do objetivo do estudo.” Mesmo não sendo completamente extrapolável para outras espécies de seres vivos, os resultados que o Prof. Martinez-Garcia e seus colaboradores apresentam neste trabalho implicam numa nova maneira de se olhar para a ecologia. Além disso, é um grande passo inicial que incentiva a pesquisa com grupos de seres vivos cada vez mais complexos, como insetos, plantas e vertebrados. Agora se entende melhor o que são esses indivíduos solitários, antes considerados erros aleatórios da natureza. “É o que se falava antes: ‘eles estão aí, mas não são importantes’. Agora a pergunta mudou: na verdade eles fazem parte do comportamento coletivo, então que papel eles desempenham de um ponto de vista ecológico e evolutivo?”.